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Dez anos sem Amy Winehouse: a `retrofuturista’ inesquecível.

Insubstituível. Pela voz de contralto arrebatadora. Pelo carisma. Pelo visual. Dez anos depois de sua morte por abuso de álcool completados nesta sexta-feira (23), ninguém preencheu o vácuo deixado por Amy Winehouse. Não há pares semelhantes. Assim é com nomes como Elvis Presley, Beatles, Michael Jackson, Elis Regina, João Gilberto. Assim é com Amy Winehouse

Tragicamente, a cantora e compositora britânica faz parte do mítico ‘clube dos 27’: artistas geniais que morreram de forma precoce aos 27 anos, como ela, Kurt Cobain, Janis Joplin e Jim Morrison. Com seu livro ‘Minha Amy – A Vida Que Partilhamos’, que está em pré-venda e será lançado no início de agosto no Brasil (Editora Agir, 368 págs., R$ 69,90), o músico britânico Tyler James, melhor amigo de Amy desde a adolescência, traz mais elementos dessa persona complexa, a partir de seu olhar afetivo (mas não complacente) e suas memórias de praticamente uma vida inteira compartilhada com ela. 

 James a conheceu em uma das aulas na Escola de Teatro Sylvia Young, em Londres. Ali, diante dele, a garota miúda que tinha 12, 13 anos, mas parecia não passar dos 9, começou a cantar. “Eu não conseguia acreditar nos meus ouvidos ou nos meus olhos. Aquela garotinha cantava como uma jazzista veterana de 40 anos que bebia três garrafas de uísque e fumava cinquenta Marlboros Red por dia”, descreve ele no livro. Os dois não se separaram mais, até a morte dela. Ele foi o segundo a entrar na casa de Amy e encontrá-la sem vida (o primeiro foi o segurança Andrew Morris), momento doloroso relatado por ele no livro.

Para James, o que fez Amy atingir o mais alto patamar de artista que influencia, mas não deixa herdeiros? “De vez em quando, surge alguém que é único em todos os aspectos. E ela era única. Sua aparência, sua atitude, sua música, seu som, suas letras. Ela era assim como pessoa. Tão inteligente, tão talentosa”, avalia o cantor e compositor, em entrevista à CNN. “Amy cresceu ouvindo jazz, era uma estudiosa do gênero, mas também ouvia hip hop e R&B. Depois, ela entrou nesses grupos de garotas dos anos 50, como as Shangri-Las. E misturou todas essas coisas.”

Mais que o som

Amy uniu sua técnica e conhecimento a sua alma de artista. Ao imponderável. “Claro, você pode listar carisma, carga dramática, a capacidade de ser um repórter do seu tempo, ou seja, fazer uma leitura do estilo de vida, dos timbres, e traduzir isso em uma obra, no caso, musical”, observa o produtor João Marcello Bôscoli. “Mas quando você pega uma foto do Bob Marley, do Elvis, da Amy, parece que na foto você já vê que a pessoa tem uma aura, um magnetismo. Amy tinha isso.”

É possível que venha a existir uma cantora com as mesmas características de Amy Winehouse: inglesa, branca, influenciada pelo jazz e pelo soul,  com um quê de Billy Holliday, uma pitada de Erykah Badu. “Ela poderia ter tudo isso, e não ter acontecido nada. Mas há esse outro ingrediente, esse ‘je ne sais quois’ (não sei o quê)”, acrescenta Bôscoli.

Parte importante dessa aura deve-se ao retrato cru que Amy permitia que se tirasse dela, em seus momentos mais sombrios. Sem filtros de apps e redes sociais, sem intermediação excessiva de agentes e gerenciadores de crises. Amy estava sempre a flor da pele. “Ela vem com algo profundamente humano, o sofrimento, os conflitos, as inseguranças, tudo isso ela juntou ao talento, à força. É uma coisa muito verdadeira”, acredita o produtor, filho de Elis Regina e do jornalista, produtor e compositor Ronaldo Bôscoli.

Segundo ele, existia um drama, uma profundidade e não um plano de marketing. “Miley Cyrus fez tudo para virar uma Amy Winehouse: vazou filme íntimo, tomou drogas, polêmica, polêmica. Ela é respeitada, é muito legal, mas não chegou aonde a Amy chegou.” Ele lembra de ter ouvido a britânica pela primeira vez cantando em ‘Frank’, seu disco de estreia de 2003 – que teve boa recepção da crítica. Mas o estouro mesmo veio com o segundo álbum, ‘Back to Black’ (2006). “O que ela fez era algo retrofuturista, porque os arranjos eram meio 60’s, talvez começo de 70’s, mas com os timbres de hoje.”

Mais que a dor

Há mais de 10 anos apresentando um show-tributo a Amy Winehouse em paralelo ao seu trabalho autoral, a cantora e compositora Miranda Kassin diz que, em ‘Back to Black’, Amy e o produtor Mark Ronson, grande responsável pela sonoridade do disco, “acharam um gênero musical novo, que é soul pop, pop soul music”.

“O ‘Back to Black’ é totalmente autobiográfico, fala das dores, do amor, dos tombos, é uma entrega muito bonita. É um disco verdadeiro e exposto”, analisa Miranda, que fará uma live especial em homenagem a Amy nesta sexta, 23, às 22h15, em seu Instagram. “As pessoas sentiam a força e a fragilidade ao mesmo tempo, muitas se inspirando, muitas se identificando. Ela foi essa paixão avassaladora. Muita gente se identificou com a obra dela, da forma como ela se expôs, sem medo. E mostrou as feridas.”

Amy Winehouse em show no festival Oxegen, em 2008
Amy Winehouse em show no festival Oxegen, em 2008

Com fortes referências de ícones da soul em sua formação musical, Miranda faz sucesso com seu show dedicado à obra de Amy, o que a levou a abrir o show da cantora britânica no Brasil, em 2011. Foi um dos grandes momentos na vida de Miranda. Na época, Amy tentava levar uma vida saudável, longe das drogas e das bebidas, como fazia nos intervalos entre as reabilitações (esse drama, aliás, inspirou um de seus maiores sucessos, ‘Rehab’, em ‘Back to Black’). O documentário ‘Amy’, de 2015, mostra que a compositora não estava preparada para fazer viagens e shows.  

No show em São Paulo, Amy visivelmente não estava bem. A imagem dela no palco contrastava com as fotos publicadas na imprensa em que aparecia feliz, em um hotel de luxo em Santa Teresa, no Rio, onde ficou hospedada. Amy chegou atrasada ao Anhembi. Ao longo da apresentação, foi ficando dispersa, confusa. Parecia esquecer algumas letras e, nessas horas, era afetuosamente amparada por sua banda, que assumia os vocais. Amy chegou a desafinar. Na plateia, um misto de surpresa e tristeza em ver a cantora daquela forma, tão fragilizada.

Miranda assistiu à apresentação de sua musa no backstage. Não era permitido álcool no camarim e em nenhuma parte. “Lembro que o show atrasou pra caramba, porque ela não queria ir. Quando chegou ao estádio, ela nem foi para o camarim, foi direto do carro para o palco. O segurança falou para mim que eu não podia abrir a boca, porque, se ela soubesse que havia alguém ali que era fã, ela não desceria do carro.”

À CNN, James diz que, naquele momento da vida de Amy, a amiga deveria ter se concentrado em ficar sóbria, mas que talvez o pai dela, Mitch, e o empresário pensassem que deixá-la ocupada seria o melhor para ela. “Às vezes, não ter nada para fazer também não ajuda o vício”, pondera.

“Mas ela deveria ter feito seu show no Brasil? Eu diria que, naquela fase, não era uma ideia péssima. As coisas ficaram muito ruins depois disso. Mas eu sei que ela não gostou, porque Amy estava entediada de cantar aquelas músicas, era meio que uma fase em que ela estava percebendo que não queria mais ser Amy Winehouse, não queria ser essa pessoa.”

Mais que a morte

Por que escrever um livro de memórias agora, depois de dez anos da partida de Amy? James conta que sempre soube que faria isso algum dia. Pensava que seria quando fosse mais velho. Veio antes. “Dez anos parece muito tempo, mas o luto é um processo muito difícil, complicado e nunca termina. Quando Amy morreu, achei que não conseguiria. Meu primeiro pensamento foi tirar minha própria vida”, conta.

Amy Winehouse e Tyler James
Amy Winehouse e Tyler James eram amigos desde a adolescência

James seguiu em frente, sem Amy, mas, segundo ele, não estava vivendo. “Eu estava com raiva, chateado e podia ouvir Amy me dizendo para escrever, porque foi isso que Amy fez. Ela sempre escreveu as coisas. É por isso que ela era uma musicista tão incrível. Quando sua cabeça ficava confusa com um cara ou qualquer coisa, ela escrevia e transformava isso em uma música.”

Em ‘Minha Amy’, as histórias dele e da cantora se cruzam o tempo todo, nas semelhanças, como a depressão na adolescência, e nas divergências, como no abuso alcóolico da amiga. Ao longo do livro, James relata uma vida dedicada a Amy, a cuidar dela – apesar de ele ter construído a própria trajetória na música, mesmo que bem mais discreta. Foi James quem incentivou Amy a gravar uma fita cantando pela primeira vez. Ele foi testemunha da ascensão e do calvário dela. E fala da relação dela com as drogas, o álcool, do amor destrutivo com ex-marido Blake. 

Além do livro, vai ser lançado um novo documentário da cantora, ‘Reclaiming Amy’, com narração de sua mãe, Janis. O disco ‘Amy Winehouse at The BBC’, com versões ao vivo do catálogo dela, também foi relançado em maio pela Universal.

Num exercício adivinhatório, se Amy ainda estivesse viva, o que ela estaria fazendo? Estaria casada e com filhos, como sonhava? “Espero que sim. Ela era a mais bela pessoa maternal”, James responde. Teria virado atriz? Ele acha que possivelmente sim, mas não para ser famosa, como ela não queria ter sido famosa na música. “Ela era uma grande fã de Robert Rodriguez e desse tipo de filmes. Tenho certeza de que, se ela recebesse a oferta de um papel em uma dessas coisas, ela simplesmente teria feito isso.” 

E ela teria continuado a compor? “Sim, porque, para Amy, a música era uma forma de terapia. Mas ela provavelmente não teria lançado essas músicas. Ela teria apenas se sentado, como fez, no chão da cozinha, com caneta, papel e violão, sem a garrafa de vodca, porque estaria sóbria se ainda estivesse aqui. Ela estava perto de ficar sóbria.”

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