Consolidado nas ligas europeias, formato pode beneficiar clubes endividados ou aqueles que buscam ter mais competitividade no cenário nacional, segundo especialistas
Manchester City, Paris Saint Germain, Bayern de Munique, Chelsea: esses são alguns exemplos de clubes-empresa na Europa. No Brasil, esse modelo de administração ainda é recente, mas começa a se consolidar com a adesão de grandes times do futebol nacional.
O governo federal autorizou, em agosto do ano passado, a transformação de clubes de futebol em sociedades anônimas, adotando novas normas para melhorar o gerenciamento. Com isso, surgiu a Lei da SAF (Sociedade Anônima do Futebol).
As SAF permitem, entre outras coisas, o pagamento das obrigações do clube aos seus credores por meio da recuperação judicial ou extrajudicial, além de possibilitar a execução dos bens e uma negociação coletiva, com um plano de pagamento definido.
Para o economista e sócio da consultoria Convocados, Cesar Grafietti, as SAFs são uma oportunidade para times com “dois perfis” no Brasil: aqueles que passam por dificuldades financeiras e para aqueles que, apesar de ter as contas em ordem, enfrentam dificuldades para crescer.
“As SAF criam mecanismos que permitem ou facilitam uma reestruturação de dívidas. Os clubes conseguem mais prazos de pagamento e uma renegociação mais organizada. Isso tende a ajudar na sustentação dos clubes, que sem essa reestruturação ficam sufocados no curto prazo”
Times considerados grandes no Brasil e atolados em dívidas já aderiram ao modelo, como é o caso de Cruzeiro, Botafogo e, mais recentemente, o Vasco.
“São clubes que, se não aderissem às SAF, teriam cada vez mais dificuldades no médio prazo”, diz Grafietti.
Já em relação a equipes de pequeno porte, o economista afirmou que a adesão ao modelo pode ajudar a equipe a subir de patamar dentro do futebol brasileiro.
“Clubes que estão organizados e com poucas dívidas, mas com limitação de receitas também podem optar pelo formato. Eles vão buscar algum aporte de investidor para aderir a novas práticas, fazer investimentos de infraestrutura, aprimorar a gestão, tudo isso para aumentar a receita a longo prazo e se tornar mais competitivos”, afirma Grafietti.
Ele avalia que, nesse primeiro ano das SAF, é natural os clubes mais endividados procurarem esse formato para sua sobrevivência, enquanto clubes médios devem aguardar os resultados para escolher se optam ou não pela aderência.
Legislação
O Projeto de Lei nº 5516, de 2019, sancionado pelo governo em agosto de 2021, traz ganhos tributários fundamentais para a criação das Sociedades Anônimas do Futebol (SAF), na visão dos especialistas ouvidos pelo CNN Brasil Business.
Cesar Grafietti explica que os clubes de futebol brasileiros não eram geridos anteriormente em um modelo semelhante ao de uma empresa por causa das legislações previstas e a falta de eficiência da regulação tributária.
Por isso, o modelo mais comum no Brasil é o gerenciamento dos clubes por meio de associações, como indicam os nomes oficiais de muitos deles.
“Enquanto uma associação paga um imposto total de 3,5% a 4%, uma empresa pagaria cerca de 20% de impostos. As SAF chegam para quebrar isso, pagando apenas 5% da receita, o que é muito mais próximo do valor pago por uma associação”, afirma.
O jornalista Irlan Simões, autor do livro “Clube Empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol”, explica que a legislação brasileira das SAF nasceu a partir de regulamentações semelhantes em Portugal e na Espanha.
“Ela foi muito inspirada na lei das Sociedades Anônimas Desportivas (SADs), na Espanha e em Portugal. É uma ideia de criar um tipo específico jurídico de sociedades anônimas voltadas para o futebol”, diz Simões. “Uma vez que o futebol é um negócio de características muito específicas, os clubes devem ser sociedades anônimas reguladas de acordo com essas características e com uma tributação também muito específica.”
Benefícios
O sócio-fundador da Top Soccer, empresa especializada em planejamento financeiro para atletas, Marcelo Claudino, disse ao CNN Brasil Business que o modelo de clubes-empresa é a “maior oportunidade para o futebol brasileiro desde a Lei Pelé“.
“Agora é possível abandonar o modelo associativo, que é baseado no jogo político, de disputas pelo poder, conflitos de interesses, benesses a conselheiros… a nova legislação permite um planejamento estratégico a longo prazo e tende a quebrar esses paradigmas já estabelecidos”, afirma.
O empresário declarou que a transformação passa por uma gestão mais profissional e transparente com os sócios e com os próprios torcedores do time do coração.
“A SAF traz mais governança e transparência ao público, e provavelmente trará também mais informações em volume e em qualidade ao público, não somente para o mercado esportivo, mas para o torcedor também”, diz.
Claudino avalia que o modelo também amplia o espaço para exploração das propriedades do clube. “É um modelo que comercialmente favorece bastante.”
Apostas dos grandes clubes
Botafogo, Cruzeiro e Vasco, clubes considerados grandes no Brasil mas que passam por dificuldades, enxergam a possibilidade de retomar o protagonismo nos gramados com a migração para a gestão empresarial.
O CEO do Vasco, Luiz André Mello, afirmou que essa é a melhor maneira de tornar o clube novamente protagonista no futebol nacional, de uma forma sustentável e modernizando sua estrutura administrativa.
“Primeiro, chegamos a um consenso de que a melhor opção para mudar a realidade do clube, em meio ao seu alto endividamento, seria a criação e negociação da SAF. Depois dessa decisão, iniciamos um longo período de prospecção, no qual recebemos e analisamos criteriosamente várias propostas”, disse.
“No fim, entendemos que o projeto da 777 Partners foi o que mais atendia aos interesses do Vasco. Um projeto sólido, pautado na gestão profissional e competente. Tenho certeza que isso é o que a torcida vascaína mais deseja: um clube saudável, forte e competitivo”, destacou.
Já Jorge Braga, CEO do Botafogo e um dos pivôs na venda da SAF do clube para o americano John Textor, explicou que é necessário haver uma transição administrativa, mas que seja alinhada à cultura do clube as características do investidor.
“Especialmente no caso do Botafogo, que assegurou uma mudança de cultura profunda, no sentido de prestar conta com muita transparência, também é fazer a ponte para essa nova linhagem que vem de acordo com o perfil do novo investidor.
“No final das contas, o trabalho é ser invisível, fazer tudo continuar funcionando e evoluindo sem grande ruptura. Essa é a missão da gestão profissional, que faz essa ponte entre o passado e o futuro, de falar pelos resultados e não pelo brilho individual”, completou.
Perigos
Já o jornalista Irlan Simões questiona a capacidade de os clubes de futebol se inserirem no modelo. Segundo ele, a transformação de uma associação de futebol em uma empresa não chega a ser uma garantia de melhoria financeira e esportiva.
“Os clubes estão vendendo suas marcas muito apressadamente, por quaisquer valores. É certo que eles estão endividados, possuem má condição esportiva e a moeda está desvalorizada, mas, na minha opinião, estão vendendo suas marcas por pouco”, diz.
Simões pondera que o futebol “não é uma ciência exata” e mesmo que investidores profissionalizem a administração, isso não garante que o clube seja campeão e o retorno, dado em campo.
“Você pode ter todo o dinheiro do mundo, uma gestão extremamente profissional e não dar resultado em campo. Assim como pode ter uma gestão que é uma tragédia, mas nos jogos o time joga bem e é campeão. Essa crença que está acontecendo no Brasil é muito perigosa, sobram casos de clubes empresariais que não tiveram sucesso no resto do mundo”, acrescenta Simões.
Risco de falência
Cesar Grafietti, economista e sócio da consultoria Convocados, enxerga dois pontos de atenção que um clube deve ter ao buscar a transformação em empresa.
“É preciso organizar um plano em que a associação garanta alguma participação e um acordo para que haja um planejamento a longo prazo eficiente que assevera a sustentabilidade do clube”, diz. “O segundo ponto é, na verdade, uma maior atenção com o perfil do investidor. É necessário buscar parceiros que aportem conhecimento e inteligência, que conheçam o futebol, e não aqueles que ofereçam dinheiro”, completa.
Grafietti alerta para que a associação tenha uma cláusula no contrato firmado a possibilidade de recompra por determinado valor, no caso de o investidor se frustrar com o retorno e optar por se desfazer do negócio.
“Isso é necessário para o clube não quebrar ou não se tornar irrelevante. É uma garantia de que o clube não vai desaparecer a longo prazo caso os planejamentos não deem certo”, afirma.
Processo
Segundo os especialistas, a transformação de um clube em empresa passa por algumas etapas. No caso de clubes que tenham torcedores como sócios, Simões explica que o processo passaria pela assembleia de sócios e pelo conselho deliberativo dos clubes.
Marcelo Claudino afirmou que o apelo da torcida pode ser fundamental na hora da negociação, sobretudo para times grandes.
Por fim, o economista Cesar Grafietti afirma que a simpatia da torcida é importante, mas a aprovação depende apenas dos sócios (sejam torcedores ou não), conselheiros e membros da associação que comanda o clube.
Próximos passos
Marcelo Claudino, sócio-fundador da Top Soccer, calcula um “boom” de clube-empresa no futebol brasileiro, com novos negócios em 2022.
“Eu acredito que vá existir um boom inicial de adesão, seguido por um período de pausa. Depois disso, os resultados dos clubes que fizeram o investimento lá atrás deverão mostrar os caminhos futuros”, diz Claudino. “Ainda é cedo para saber que destinos vamos tomar, mas a minha sensação é de uma tendência positiva, de um final mais feliz para os clubes do que aqueles tinham antes das SAFs”, acrescenta.
Simões também acredita que, em um primeiro momento, o dinheiro aplicado deve fazer com que o clube suba de patamar. No entanto, ele questiona o quanto seja sustentável.
“Com o fim do aporte, não sabemos o que pode acontecer. Não dá para saber se daqui a seis ou sete anos vamos falar dos ganhos sucessivos de Botafogo e de Vasco. É uma incógnita”, disse. “Mas daqui a 2 ou 3 anos esse investimento será sentido, sim”, sentencia.
FONTE CNN