O primeiro disco solo de músicas inéditas da artista em uma década sintetiza o universo particular de obra autoral iniciada há 30 anos com o álbum ‘Mais’.
Marisa Monte refaz crônicas e declarações de amor e esperança na requintada atmosfera ‘déjà vu’ do álbum ‘Portas’
Arte de Marcela Cantuária
Resenha de álbum
Título: Portas
Artista: Marisa Monte
Edição: Phonomotor Records / Sony Music
♪ Eis o que você – leitor admirador de Marisa Monte – quer saber de verdade sobre Portas: o álbum lançado às 21h desta quinta-feira, 1º de julho de 2021, soa tão interessante quando dèjá vu.
Aos 54 anos, completados hoje, a cantora e compositora gravita com requinte ao redor de universo musical particular que começou a gerar há 30 anos com o álbum Mais (1991).
Descontado o primeiro disco de intérprete, MM (1989), marcado pelo esplendor vocal dessa cantora que ditou padrões ao longo dos anos 1990, o que Marisa Monte basicamente tem feito são crônicas e declarações de amor com cancioneiro de grande apelo pop(ular).
Em Portas, álbum cuja capa expõe arte inédita de Marcela Cantuária, a compositora refaz essas crônicas, abrindo parcerias com Marcelo Camelo e Chico Brown sem dar um passo estético adiante em obra já sólida. É como as 16 faixas do álbum Portas sintetizassem os caminhos trilhados pela artista ao longo dos 30 anos que separam Portas do definidor álbum Mais.
Parceiro de Marisa Monte em cinco das 16 músicas inéditas do disco, inclusive no soul Calma, faixa lançada em 10 de junho como single em que a cantora vislumbra a alvorada com aliciante pegada pop, Chico Brown aparece ocupar com naturalidade no álbum o lugar do pai, Carlinhos Brown, pela primeira vez ausente como compositor da discografia de Marisa desde o disco Verde anil amarelo cor-de-rosa e carvão (1994).
Tanto que um espírito tribalista parece pairar sobre três das cinco canções compostas por Marisa com Chico, sobretudo na sedutora Fazendo cena e Em qualquer tom, valsa que versa sobre o amor com palavras do dicionário musical (“São tantos acordes acordando aqui na gente / Tanta harmonia, tão assim tão de repente / A delirar no amor morar”).
Tanto Em qualquer tom e Fazendo cena quanto Medo do perigo – a outra canção de clima tribalista feita por Marisa com Chico Brown – têm os toques acústicos do violão e do piano do neto de Chico Buarque em arranjos mais enxutos.
Na contramão dessa economia, a canção Déjà vu – a quinta parceria de Marisa com Chico Brown – foi formatada com solo de guitarra e com a opulência das cordas orquestradas pelo maestro Arthur Verocai. As cordas e sopros entram com vigor no refrão para reforçar o convite feito pelos versos “Vem, vamos lá / Vem viver / Vem sonhar / Pela estrada de estrelas do mar”.
Arranjadas em atmosfera clássica tanto por Verocai como por Marcelo Camelo, as cordas são uma das marcas sonoras do álbum Portas.
Arte de Marcela Cantuária exposta no encarte do álbum ‘Portas’, de Marisa Monte — Foto: Reprodução
Arte de Marcela Cantuária exposta no encarte do álbum ‘Portas’, de Marisa Monte — Foto: Reprodução
Presente nos créditos de três das 16 músicas do disco, sendo duas compostas com Marisa, Marcelo Camelo parece ter entrado no universo particular da parceira conterrânea. Nem tanto na música que assina sozinho, Espaçonaves, samba de cadência suave, evocativa da bossa nova.
Das duas parcerias de Camelo com a artista, Você não liga se diferencia por embutir, na cadência de samba-rock, ecos do suingue matricial de Jorge Ben Jor, compositor e músico referencial para Marisa, a ponto de ter tido três músicas regravadas na discografia solo da cantora entre 1994 e 2011. Sal, a outra composição de Marisa com Camelo, é canção bonita, assim como a maior parte do repertório do álbum Portas.
A alta concentração de músicas belas tem força para anular qualquer argumento dos detratores do disco. Mesmo que Portas ofereça a rigor mais do mesmo, não importa porque, sim, são bonitas as canções.
Promovida com clipe que tem estreia programada para domingo, 4 de julho, no programa Fantástico (TV Globo), a música-título Portas é canção feita por Marisa com Arnaldo Antunes e Dadi Carvalho no tempo de delicadeza que pauta a maior parte da obra dos artistas.
Fundamental na arquitetura dos álbuns Mais e Verde anil amarelo cor-de-rosa e carvão, Arto Lindsay coproduziu a faixa em Nova York (EUA), assim como fez com o single Calma.
Outra música do trio formado por Marisa com Arnaldo e Dadi, A língua dos animais parece ter incorporado a natureza do espírito novo baiano. A faixa começa lírica, quase etérea, até ser bafejada pelo sopro do trio de metais orquestrados pelo trombonista Antonio Neves para iluminar o refrão dos versos “Vou sair para passear ao sol / Vou pisar / No capim”.
Primeiro álbum solo gravado por Marisa Monte com músicas inéditas em dez anos, Portas reverbera as boas vibrações do antecessor O que você quer saber de verdade (2011). O álbum soa leve e qualquer eventual traço de melancolia nas letras é dissipado por essa leveza.
Em sintonia com o espírito solar do disco, Marcelo Camelo orquestra com suavidade as cordas ouvidas em Quanto tempo, canção de Marisa com Pedro Baby e Pretinho da Serrinha.
Mesmo soando dèjá vu, o disco tem frescor, evidenciado no sopro da flauta de Melanie Charles sobre a suave cama percussiva que embala Praia Vermelha, música envolvente que marca a retomada da parceria de Marisa com Nando Reis, compositor até então ausente da discografia de estúdio da cantora desde o álbum Infinito particular (2006).
Segunda das três parcerias de Marisa com os irmãos Lúcio Silva e Lucas Silva, a apaixonada balada Totalmente seu também sobressai no disco, mesmo sem atingir o nível sublime da primeira, Noturno (Nada de novo na noite), lançada há cinco anos no álbum Silva canta Marisa (2016) em gravação feita com a participação da cantora. É o toque do piano de Silva que conduz o arranjo de Totalmente seu.
Parceria de Marisa com Arnaldo Antunes, Vagalumes tem letra que é pura poesia (quase) concreta do titã tribalista. O arranjo evoca com sutileza um clima de fado.
Samba que poderia ter figurado no álbum Universo ao meu redor (2006), dedicado por Marisa ao gênero, Elegante amanhecer exalta a Portela enquanto emula a cadência nobre da obra dos bambas da velha guarda da agremiação carnavalesca carioca, à qual Marisa é ligada pela herança do pai, Carlos Monte, de longa atuação na direção da escola. Parceiro de Marisa na criação do samba, o bamba imperial Pretinho da Serrinha toca as percussões da faixa.
Fechando Portas, Pra melhorar – música composta e gravada por Marisa com Seu Jorge e com Flor, filha do artista – se impõe ao fim do álbum como um dos grandes possíveis hits do disco. Turbinada com o vocal soul de Flor, Pra melhorar é música que tem tudo para ganhar coro de multidões quando voltarem os shows presenciais.
Pra melhorar é sopro forte de esperança de dias melhores. Um alento que reforça a sensação de que, em essência, ao voltar ao disco, Marisa Monte refaz crônicas e declarações de amor e esperança na requintada atmosfera dèjà vu do álbum Portas.
MARISA MONTE